quinta-feira, 16 de setembro de 2010
30 anos depois, Nelson é feliz!
- Nelson, meu filho, há quinze anos que guardo um segredo, um segredo que me tem avassalado o coração e estrangulado a alma…. Tentei abortar-te, mas tu sobreviveste!
Naqueles tempos a vida era duríssima e tive vender o corpo. Como tinha os dentes tortos, sexo oral estava fora de questão, logo os meus clientes procuravam outros tipos de prazer. Com o pouco tempo que tinha disponível, tinha de maximizar os lucros. Só de me lembrar a quantidade de homens hediondos e sujos que solicitavam os meus serviços… - disse com desgosto.
- Sabes quem é o meu pai? – Perguntei abruptamente e com repulsão.
- Na altura, trabalhava nas docas e eram muitos os ébrios marinheiros de passagem. Também era requisitado com frequência pelo antigo cangalheiro do Cemitério de Benfica. Tinha estranhos fetiches, mas deixava sempre uma boa gorjeta. – À medida que prenunciava tais palavras, sua cabeça levantava e passou a olhar-me nos olhos.
Experimentei uma nova sensação, que me cobria o corpo em negras chamas. Seria ódio, o irmão bastardo do amor, esse sentimento que achava incondicional entre mãe e filho.
- Era uma manhã fria quando me apercebi que estava realmente grávida. Há vários meses que vinha mentido a mim própria sobre tal possibilidade. Estava decidida em expurgar esse mal que estava dentro de mim… - Afirmou, suspirando.
- Ramon, um espanhol calvo e bigode que tinha fugido à guerra civil, era dono de um talho que vendia carne de origem duvidosa e paralelamente, fazia abortos ilegais.
Esperei 30min para que me atendesse. Ouvia gritos agonizantes por detrás da porta. “Que tortura se avizinhava nessa câmara” interroguei-me…
Finalmente entrei e o cheiro a pútrido fez-me vomitar... Avistei dois fetos mutilados e abandonados ao acaso num chão de madeira, rodeados de outras peças de carne dos mais variados animais. O carniceiro limpou a bancada com um trapo velho e andrajoso e pediu-me que me deitasse. Pegou numa tenaz e num cutelo ferrugento, deu-me uma garrafa de uma bebida espirituosa não identificável mas com alto teor de álcool e pediu que bebesse dois copos de enfiada. A bebida, por momentos, deixou-me anestesiada e num estado de quase inconsciência. Retomei os sentidos passado alguns minutos, acordada por um choro inexorável. Olhei em redor e vi-te, um bebé do sexo masculino, coberto em sangue, pendurado de cabeça para baixo, com o açougueiro sem escrúpulos segurando-te apenas por uma perna.
“ - Não o consegui matar à primeira, o sacana é resistente. Mas não há problema, dentro ou fora da barriga, matar é matar”- Disse com um sorriso nos lábios.
-Atirou-te para cima de uma bancada engordura com desprezo. Deslizaste e caíste no chão. Os teus berros eram ensurdecedores.
“ - Digo-lhe que este degenerado poderia dar um bom trabalhador. Nunca um prematuro sobreviveu nas minhas mãos tanto tempo” – disse ao voltar a colocar-te na bancada.
- Quando se preparava para dar-te o golpe final, gritei no derradeiro momento que não te matasse, pois poderias ser um bom investimento para o futuro. Paguei-lhe metade do prometido, uma vez que não tinha conseguido efectuar o aborto à primeira. Encontrei umas folhas de jornal velhas, embrulhei e levei-te para casa.
Sempre invejei a relação que as outras crianças tinham com as suas progenitoras, mas nunca pensei que fosse tão vil o desprezo que esta megera tinha por mim.
Insurgi-me e uma violenta discussão gerou-se. Por fim, peguei nas minhas coisas para nunca mais voltar a este profano lar.
- És um inútil! Nem sequer morrer sabes! – Clamou audivelmente!
- Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar este bastardo sem graça!
Maldita noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!
E foram essas as últimas palavras que ouvi da mulher que me tentou matar…
sábado, 8 de maio de 2010
Uma pitada de concentrado de mercúrio
Em volto de uma fatia de pão trincada, barrada com manteiga rançosa, Urbano e Segismundo, dois velhos de tenra idade, debatiam filosofia. Moscardos verdes de tamanho significativo traçavam voos elípticos, sem destino aparente, poluindo o ar com o seu barbárico zumbido. No fim da discussão, os dois velhos fazem um pacto de sangue, em que se um deles ficasse careca, o outro, num acto de solidariedade, teria de usar peruca.
Entretanto afastam-se, pois o tão antecipado ballet iria começar.
Um prelúdio melódico narra a relação do homem com a terra e o porquê de sempre parecer acabar quando é enterrado nela. O pano sobe sobre um enorme e primitivo ermo, pouco diferente de certas regiões da Lapónia. Homens e mulheres chegam e sentam-se em grupos separados e começam logo a dançar, mas não fazem a mínima ideia do porque disso e não tardam a sentar-se outra vez. Agora surge um jovem na Primavera da vida que dança um hino ao fogo. Subitamente descobre-se que está a arder e, depois de o escorraçarem, escapa-se sub-repticiamente. A cena está agora na obscuridade e o Homem desafia a Natureza; um combate colérico em que a Natureza é mordida na coxa, o que vai ocasionar que nos próximos semestres a temperatura nunca ultrapasse os dez graus.
Começa a cena, e a Primavera e ainda não chegou, embora se esteja nos finais de Agosto e ninguém tenha a certeza da altura em que se deve adiantar os relógios. Os anciões da tribo reúnem-se e decidem propiciar a Natureza através do sacrifício de uma virgem. Escolhe-se uma donzela. Concebem-lhe três horas para se apresentar nos arredores da aldeia, dizendo-lhe que se encontrarão lá para participar num banquete de cozido à portuguesa. Quando, à noite, a rapariga aparece pergunta logo onde estão os enchidos do Fundão. Os velhos mandam-na então dançar até à morte. Implora pateticamente, alegando não ser boa bailarina. Os aldeões insistem, e entretanto sobe num crescendo inexorável que faz a rapariga dançar tão freneticamente que os seus dentes de ouro lhe saltam da boca e vão parar a um campo de rugby coberto em girassóis. Todos se regozijam, mas é prematuro, já que a Primavera não aparece.
Assistido isso, os dois velhos concluem - vida não passa de um quadro surrealista pintado com antíteses!
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
como na caixa de Pandora em que toda a desgraça está contida,
assim é o meu negro e pútrido coração,
palpitando de ódio, vingança e maldição.
Quero o ocaso, a escuridão, a tenebrosidade,
como uma criatura das trevas, não conheço amabilidade,
para teu bem, afasta-te de mim doce criatura,
por razão, fui ostracizado para esta cova, esta sepultura.
Habituado à penumbra, a luz da tua alma ofusca-me.
Não me conheces! Não me vais mudar!
Tua insistência perturba-me!
Essas promessas repletas de fé e amor são em vão,
pois infelicidade é o meu fado, não tenho salvação...
Tentação
Imponentemente sentada num trono de marfim,
Rodeada de escravos e servos no teu templo,
Homens fracos que por um sorriso, aceitam o seu fim,
Óh sublime deusa do submundo,
cuja beleza subjuga a de Afrodíte,
aos teus pés, quantos homens já deixaste moribundo,
apenas para saciares o teu voraz apetite,
Por ti, quantos varões declararam guerra,
para conquistar o mais belo tesouro que Deus deitou à Terra!
E tu deliciando-te por todo o sangue derramado,
por ti, ser cruel e desalmado,
Óh vil deusa cuja o nome rima com amor,
mas o qual não ouso pronunciar,
anseio por ti mas tenho temor,
de ser mais uma vítima do teu olhar glaciar!