Para que não sejas
um martirizado escravo
do tempo,
tu deves intoxicar-te,
deves intoxicar-te,
e nunca parar para descansar,
com vinho, poesia ou virtude,
como escolhas.
- Baudelaire

sábado, 8 de maio de 2010

Uma pitada de concentrado de mercúrio

Em volto de uma fatia de pão trincada, barrada com manteiga rançosa, Urbano e Segismundo, dois velhos de tenra idade, debatiam filosofia. Moscardos verdes de tamanho significativo traçavam voos elípticos, sem destino aparente, poluindo o ar com o seu barbárico zumbido. No fim da discussão, os dois velhos fazem um pacto de sangue, em que se um deles ficasse careca, o outro, num acto de solidariedade, teria de usar peruca.

Entretanto afastam-se, pois o tão antecipado ballet iria começar.

Um prelúdio melódico narra a relação do homem com a terra e o porquê de sempre parecer acabar quando é enterrado nela. O pano sobe sobre um enorme e primitivo ermo, pouco diferente de certas regiões da Lapónia. Homens e mulheres chegam e sentam-se em grupos separados e começam logo a dançar, mas não fazem a mínima ideia do porque disso e não tardam a sentar-se outra vez. Agora surge um jovem na Primavera da vida que dança um hino ao fogo. Subitamente descobre-se que está a arder e, depois de o escorraçarem, escapa-se sub-repticiamente. A cena está agora na obscuridade e o Homem desafia a Natureza; um combate colérico em que a Natureza é mordida na coxa, o que vai ocasionar que nos próximos semestres a temperatura nunca ultrapasse os dez graus.

Começa a cena, e a Primavera e ainda não chegou, embora se esteja nos finais de Agosto e ninguém tenha a certeza da altura em que se deve adiantar os relógios. Os anciões da tribo reúnem-se e decidem propiciar a Natureza através do sacrifício de uma virgem. Escolhe-se uma donzela. Concebem-lhe três horas para se apresentar nos arredores da aldeia, dizendo-lhe que se encontrarão lá para participar num banquete de cozido à portuguesa. Quando, à noite, a rapariga aparece pergunta logo onde estão os enchidos do Fundão. Os velhos mandam-na então dançar até à morte. Implora pateticamente, alegando não ser boa bailarina. Os aldeões insistem, e entretanto sobe num crescendo inexorável que faz a rapariga dançar tão freneticamente que os seus dentes de ouro lhe saltam da boca e vão parar a um campo de rugby coberto em girassóis. Todos se regozijam, mas é prematuro, já que a Primavera não aparece.

Assistido isso, os dois velhos concluem - vida não passa de um quadro surrealista pintado com antíteses!

Um comentário:

  1. Veio-me à cabeça 'Partial Hallucinations. Six Apparitions of Lenin on a Piano', lol...

    No surrealismo não há por quê. É porque é. A sua matriz anti-ordem e anti-razão aboliu a justificação.

    É por isso que este teu texto parece-me mais uma mistura de dadaísmo (o nonsense aleatório e desconstrutivo) com burlesco (a narrativa estilo deboche da púbere dançando semi-nua).

    Bom texto, não estava nada à espera, surpreendeste-me. estava mesmo à espera de mais um platonismo dos teus.

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