Estava preparando o meu habitual pequeno-almoço, quando a minha mãe se aproximou, dizendo que tinha algo importante para me dizer. Parecia não me querer olhar nos olhos e falava de forma hesitante, de tal modo que gaguejava.
- Nelson, meu filho, há quinze anos que guardo um segredo, um segredo que me tem avassalado o coração e estrangulado a alma…. Tentei abortar-te, mas tu sobreviveste!
Naqueles tempos a vida era duríssima e tive vender o corpo. Como tinha os dentes tortos, sexo oral estava fora de questão, logo os meus clientes procuravam outros tipos de prazer. Com o pouco tempo que tinha disponível, tinha de maximizar os lucros. Só de me lembrar a quantidade de homens hediondos e sujos que solicitavam os meus serviços… - disse com desgosto.
- Sabes quem é o meu pai? – Perguntei abruptamente e com repulsão.
- Na altura, trabalhava nas docas e eram muitos os ébrios marinheiros de passagem. Também era requisitado com frequência pelo antigo cangalheiro do Cemitério de Benfica. Tinha estranhos fetiches, mas deixava sempre uma boa gorjeta. – À medida que prenunciava tais palavras, sua cabeça levantava e passou a olhar-me nos olhos.
Experimentei uma nova sensação, que me cobria o corpo em negras chamas. Seria ódio, o irmão bastardo do amor, esse sentimento que achava incondicional entre mãe e filho.
- Era uma manhã fria quando me apercebi que estava realmente grávida. Há vários meses que vinha mentido a mim própria sobre tal possibilidade. Estava decidida em expurgar esse mal que estava dentro de mim… - Afirmou, suspirando.
- Ramon, um espanhol calvo e bigode que tinha fugido à guerra civil, era dono de um talho que vendia carne de origem duvidosa e paralelamente, fazia abortos ilegais.
Esperei 30min para que me atendesse. Ouvia gritos agonizantes por detrás da porta. “Que tortura se avizinhava nessa câmara” interroguei-me…
Finalmente entrei e o cheiro a pútrido fez-me vomitar... Avistei dois fetos mutilados e abandonados ao acaso num chão de madeira, rodeados de outras peças de carne dos mais variados animais. O carniceiro limpou a bancada com um trapo velho e andrajoso e pediu-me que me deitasse. Pegou numa tenaz e num cutelo ferrugento, deu-me uma garrafa de uma bebida espirituosa não identificável mas com alto teor de álcool e pediu que bebesse dois copos de enfiada. A bebida, por momentos, deixou-me anestesiada e num estado de quase inconsciência. Retomei os sentidos passado alguns minutos, acordada por um choro inexorável. Olhei em redor e vi-te, um bebé do sexo masculino, coberto em sangue, pendurado de cabeça para baixo, com o açougueiro sem escrúpulos segurando-te apenas por uma perna.
“ - Não o consegui matar à primeira, o sacana é resistente. Mas não há problema, dentro ou fora da barriga, matar é matar”- Disse com um sorriso nos lábios.
-Atirou-te para cima de uma bancada engordura com desprezo. Deslizaste e caíste no chão. Os teus berros eram ensurdecedores.
“ - Digo-lhe que este degenerado poderia dar um bom trabalhador. Nunca um prematuro sobreviveu nas minhas mãos tanto tempo” – disse ao voltar a colocar-te na bancada.
- Quando se preparava para dar-te o golpe final, gritei no derradeiro momento que não te matasse, pois poderias ser um bom investimento para o futuro. Paguei-lhe metade do prometido, uma vez que não tinha conseguido efectuar o aborto à primeira. Encontrei umas folhas de jornal velhas, embrulhei e levei-te para casa.
Sempre invejei a relação que as outras crianças tinham com as suas progenitoras, mas nunca pensei que fosse tão vil o desprezo que esta megera tinha por mim.
Insurgi-me e uma violenta discussão gerou-se. Por fim, peguei nas minhas coisas para nunca mais voltar a este profano lar.
- És um inútil! Nem sequer morrer sabes! – Clamou audivelmente!
- Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar este bastardo sem graça!
Maldita noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!
E foram essas as últimas palavras que ouvi da mulher que me tentou matar…
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
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